segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Fé e Política na Perspectiva Latino-Americana

Predomina ainda entre os cristãos a idéia de que a mística nada tem a ver com a política. Seriam como dois elementos químicos que se repelem. Basta observar como vivem uns e outros: os místicos, trancados em suas estufas contemplativas, alheios aos índices do mercado, absorvidos em seus exercícios ascéticos, indiferentes às discussões políticas que se travam em volta deles.

Os políticos, consumidos por infindáveis reuniões, correndo contra o relógio da história, mergulhados no redemoinho de contatos, de análises e de decisões que saturam o tempo e não abrem espaço sequer ao convívio familiar, quanto mais à meditação e à oração!

É verdade: uma certa concepção da mística é incompatível com certo modo de fazer política. A Vida Religiosa está imbuída deste conceito de que contemplativo é quem dá as costas ao mundo para postar-se diante de Deus. Todavia, não é bem no Evangelho que se encontram as raízes desse modo de testemunhar o absoluto de Deus, mas sim em antigas religiões pré-cristãs e nas escolas filosóficas gregas e romanas, que proclamavam a dualidade entre alma e corpo, natural e sobrenatural, sagrado e profano.

O monaquismo, que nasce no século IV como afirmação da fidelidade evangélica perante o desfibramento da emergente Igreja constantiniana (leiam-se as cartas de São Jerônimo), não teve alternativa histórica senão se nutrir na ideologia em voga: o platonismo. A idéia de uma natureza humana conflitantemente dividida entre carne e espírito representou, para a espiritualidade cristã, o que a cosmologia de Ptolomeu significou antes das teorias científicas de Copérnico e Galileu: quem se dedica às coisas do mundo, à pólis, arrisca-se a perdição. A santidade era concebida como negação da matéria, mortificação (morte) da carne, renúncia da vontade própria, fruição de êxtase espiritual. Nessa ótica atomística de se compreender a relação da pessoa com a divindade, havia acentuada dose de solipsismo, o cuidado do aprimoramento espiritual do eu sobrepunha-se à exigência evangélica de amor aos outros.

Como nem mesmo a discussão em torno do sexo dos anjos deixa de ter seus reflexos políticos, tal concepção pagã da mística - que conduziu por desvios a espiritualidade cristã - serviu de matriz às utopias políticas da República de Platão, das Cidades de Santo Agostinho, das propostas de Thomas Morus e de Tomás de Campanella. Na Igreja, o equívoco alcança o seu ponto alto na Idade Média, confinado entre as fronteiras políticas do poder eclesiástico e na idéia de que o Reino de Deus se estabelecera neste mundo.

É interessante constatar que os grandes místicos foram simultaneamente pessoas mergulhadas na efervescência política de sua época: Francisco de Assis questionou o capitalismo nascente (como bem o demonstra a magistral obra de Leonardo Boff, São Francisco Ternura e Vigor ); Tomás de Aquino defendeu, em "O Regime dos Príncipes", o direito à insurreição contra a tirania; Catarina de Sena, analfabeta, interpelou o papado; Teresa de Ávila, é considerada uma "mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz", como a qualificou Dom Felipe Sega, núncio papal na Espanha. E ela em 1578, revolucionou, com São João da Cruz, a espiritualidade cristã.

Por mais que as escolas espirituais do Ocidente antigo tenham a ensinar, bem como as obras dos místicos cristãos, é no Evangelho que se encontram os fundamentos da mística cristã. A vida de Jesus não busca a reclusão dos monges essênios e nem se pauta pela prática penitencial de João Batista (Mateus 9, 1-15). Ela se engaja na conflitividade da Palestina de seu tempo. O Filho revela o Pai andando pelos caminhos; seguido por apóstolos, discípulos e mulheres; acolhendo pobres, famintos, doentes e pecadores; desmascarando escribas e fariseus; cercado por multidões; fazendo-se presença incômoda nas grandes festas em Jerusalém; perseguido e assassinado na cruz como prisioneiro político.

Dentro dessa atividade pastoral, com fortes repercussões políticas, Jesus revela-se místico, ou seja, como alguém que vive apaixonadamente a intimidade amorosa com o Pai, a quem ele trata por Abba - termo aramaico que exprime muita familiaridade, como o nosso "papai" (Marcos 14, 36). Seu encontro com o Pai não exige o afastamento da pólis, mas sim abertura de coração à vontade divina.

Fazer a vontade de Deus é a primeira disposição espiritual do místico. Essa vontade não se descobre pela correta moralidade ou pela aceitação racional das verdades de fé. Antes de ser uma conquista ética, a santidade é dom divino. Portanto, nas pegadas de Jesus, o místico centra sua vida na experiência teologal; sua conduta e sua crença derivam dessa relação de amor que ele tem com Deus. Teresa de Ávila dirá isso com outras palavras: "A suprema perfeição não consiste, obviamente, em alegrias interiores, nem em grandes arroubos, visões ou espírito de profecia, mas sim em adequar nossa vontade à de Deus" (Fundações 5, 10).

A oração é o hábito que nutre a mística. Mesmo Jesus reservava, entre sua atividade, momentos exclusivos de acolhimento do Pai em seu espírito. "Permanecia retirado em lugares desertos e orava" (Lucas 5, 1-6). "Ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em oração a Deus" (Lucas 6,12).

Para aprofundar a fé, a oração é tão importante quanto o alimento para nutrir o corpo ou o sono para recuperar energias. No entanto, mesmo dentre o ativismo das grandes cidades, os cristãos encontram tempo para comer e dormir - se o mesmo não ocorre com a oração, não é apenas por culpa deles. No Ocidente, perdemos os vínculos que nos ligavam às grandes tradições espirituais e somos herdeiros de um cristianismo racionalista, fundado no aprendizado de fórmulas ortodoxas, bem como pragmático, voltado à promoção de obras ou ao desempenho imediato de tarefas. Fazemos de nosso cristianismo uma resposta mais próxima de nossa fome de pão do que de nossa fome de beleza. A dimensão de gratuidade - essencial em qualquer relação de amor - fica relegada a momentos formais, rituais, de celebrações, sem dúvida importantes, mas insuficientes para fazer da disciplina da oração um hábito que permita penetrar os sucessivos estágios da experiência mística.

Ao contrário de certas escolas pagãs, a mística cristã não visa a oferecer uma técnica que leve o crente às núpcias espirituais com a divindade - embora isso possa ocorrer como dom misericordioso do Pai. Antes, ela visa a ensinar-nos a amar - assim como Deus ama - as pessoas com as quais convivemos, nossos parentes, a comunidade com a qual estamos comprometidos em nossa pastoral, o povo a que pertencemos e, especialmente, os pobres, imagens vivas de Cristo. Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito (1 João 4, 12).

O amor de Jesus a seu povo é proporcional à sua fidelidade ao Pai. Por isso, ele aceita o cálice: não retém para si a sua vida, porque entende que o Pai a exige por seu povo (Marcos 1,4-36). É aqui que a experiência mística encontra seu ponto de contato com a atividade política.

(Texto tirado do Movimento Nacional Fé e Política)

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