Lúcio Rangel A. Ortiz*
Como estamos no mês das vocações e o último domingo do mês de agosto é o dia do leigo, trago uma reflexão sobre a fé e a missão do leigo de acordo com o subsídio do V Encontro Nacional do Laicato do Brasil.
O Concílio Vaticano II reafirmou a base dos leigos na Igreja, que é o Batismo - vocação fundante do ser cristão e do ser Igreja, de onde brotam todos os ministérios, inclusive os ministérios ordenados. Consequentemente há uma co-responsabilidade de todos na missão da Igreja, que é a de colaborar com a edificação do Reino de Deus no Mundo, do qual a Igreja é “gérmen e princípio”. Afirma a Lumen Gentium que há uma radical igualdade em dignidade, de todos os ministérios.
Na prática, esse modelo de Igreja, preconizado pelo Vaticano II, constitui-se ainda uma realidade e uma agenda pendente. Soma-se a isso, o desafio de fazer acontecer esse modelo em nosso contexto atual - brasileiro, latino-americano, mundial, marcado por novos sinais dos tempos. Urge uma segunda recepção do Vaticano II e da tradição latino-americana. E, em nosso caso, apresenta-se a complexa tarefa de responder a esse desafio como leigos em uma Igreja ainda marcadamente clerical e excludente do laicato
O conflito com a hierarquia tendeu a dizer que a missão do leigo é no mundo e, ainda, não como Igreja, mas como cidadão cristão. De objeto passa a ser sujeito, sim, mas só no mundo e ainda com a função de ser o aplicador das diretrizes emanadas pelo magistério dos bispos. Quando ele assume uma tarefa no mundo, a Igreja como instituição o abandona.
Hoje, a teologia católica procura resgatar o valor do leigo no seu lugar e na sua função específica no seio da Igreja, com ministérios próprios, inclusive para as mulheres, que excluídas dos ministérios ordenados e continuam até hoje.
Neste particular, deve haver colaboração da Igreja com todos os que buscam uma sociedade fraterna e solidária, mesmo com os não-católicos (GS 40), na busca do bem comum (UR 4), no serviço à humanidade como um todo (GS 92), no campo social, na cultura, nas artes (UR 12). É um dever o diálogo e a colaboração entre a Igreja e a sociedade (CD 13).
É urgente, então, fazer cessar a lógica colonialista de rejeição e de assimilação do outro, que é uma lógica que vem de fora, mas que também está dentro de nós, e criar espaços para vozes e rostos ‘outros’ de nosso pluralismo arcaico e reprimido. O pluralismo, mais que uma abertura, é um pressuposto. Como o sujeito é plural, o pressuposto é da alteridade e se conceber na relação com o diferente.
O ponto de partida de uma missão na ótica dialógica do Evangelho é o outro, pois, enquanto comunicação, ela só começa quando o outro responde. Este ‘outro’, não é uma mera categoria ontológica, universal. Ele tem corpo, é sujeito plural, tanto do ponto de vista cultural, como religioso e no interior de uma mesma confessionalidade. É um ser situado, em contextos particulares e concretos.
Por isso, a missão implica diálogo inter-cultural, inter-religioso e, entre cristãos, intra-eclesial, cujo resultado de uma missão como evangelização inculturada, é o nascimento ou a consolidação de Igrejas culturalmente novas, inculturadoras do Evangelho, no horizonte de uma eclesiologia pluriforme.
A Igreja hoje, mais do que nunca, precisa descentrar-se de suas questões internas e sintonizar-se com as grandes aspirações da humanidade. A religião, enquanto mediação de salvação descentra a Igreja de si mesma e a lança em uma missão não exclusiva. O cristianismo é portador da resposta mais completa, mas não a única. O espaço estritamente religioso ou intra-eclesial não esgota a missão da Igreja, sinal e instrumento do Reino de Deus no coração da história. Deus quer salvar a todos e, a Igreja, como mediação especial, precisa ser a Igreja de todos, mesmo daqueles que não são Igreja.
Por outro lado, fazer do ser humano o caminho da Igreja, implica superar os tradicionais paradigmas de uma Igreja hierárquica, desde onde se vê o ser humano como se fosse simplesmente uma categoria universal, sem rosto e sem pátria ou um ente habitado por fome de sentido. Estes paradigmas, não levam a ação evangelizadora a aterrizar na concretude da história, a situá-la frente às contradições de seu contexto. Deus quer a vida a partir do corpo.
A conversão, da qual o evangelizador é apenas mediação de Deus e sua graça, é muito mais do que uma mudança pessoal e do coração. A conversão do discípulo é em vista de uma missão no mundo, dado que a Igreja existe para o mundo, enquanto continuação da obra de Jesus, que consistiu em fazer presente e, cada vez mais visível, o Reino de Deus, na história. Daí o compromisso missionário, também com a mudança das estruturas, porquanto o pecado social não é a soma de pecados individuais, mas pecados pessoais que passaram às instituições.
A teologia, enquanto estudo e esclarecimento da revelação de Deus, através das Escrituras, do caminhar do Povo de Deus (Igreja) e da própria história humana, livra-nos de uma fé ingênua, porquanto ser de uma instância crítica. Daí também o seu profetismo. Primeiro, cabe na fé a audácia do questionamento, da dúvida, das perguntas, de se perguntar pelo aparente silêncio de Deus ou até a sensação de sua omissão diante de situações humanas extremas. É antes sinal de maturidade e da compreensão da fé como um ato responsável e livre. Indigno do ser humano seria uma fé que exigisse o mero assentimento intelectual de um corpo de doutrina que se impõe por si mesma.
Na religião, o ser humano tem o direito de mergulhar inteiro, com todas as faculdades da razão, com todas as ciências. É apoiada nelas e só assim que a fé será um ato ‘de’ razão, pois é na razão que o ser humano encontra a base adequada para lançar-se para além dela. A fé não anula a razão, ao contrário, a pressupõe, ao mesmo tempo em que a supera. Em segundo lugar, se o ser humano tem o direito de pensar criticamente a fé diante de Deus, da mesma forma tem o direito e o dever de fazê-lo dentro da Igreja e desde a Igreja. O dever está respaldado no convite de Pedro a ‘dar razões à própria fé’. Do direito a isso, nem se deveria falar, pois se Deus admite o questionamento, muito mais deveria fazê-lo a Igreja, uma instituição inscrita na precariedade do presente. Mas, justamente pelos seus limites, o dever de profecia pela teologia se torna um direito nem sempre atendido e incentivado e, infelizmente, outras vezes, limitado. Daí a função profética da teologia, também dentro da Igreja.
Nesta perspectiva, todo batizado, para aceder a uma fé madura, precisa ser em certa medida também um ‘teólogo’. E consequentemente, a Igreja tem o dever de propiciar as condições para que ele o seja. A teologia, na história da Igreja, um pouco menos na época antiga, sempre tendeu a estar monopolizada, primeiro por alguns pensadores cristãos e, depois, pelo clero. O termo ‘leigo’, por causa disso, chegou a ter uma conotação pejorativa, enquanto sinônimo de quem não sabe ou é ignorante em algum assunto. Por isso que há a necessidade de leigos e leigas a serem capacitados também para uma reflexão teológica de tipo profissional. É a condição para que os leigos possam ser, de modo pleno, os protagonistas da evangelização, como afirmaram os bispos da América Latina,
Finalmente, o ministério da profecia através da teologia necessita, além de espaços de liberdade no interior da instituição eclesial, uma palavra de incentivo e de apoio da parte do magistério.
"A liberdade é a prerrogativa da criatividade " - base mestra da ação evangelizadora da Igreja que implica um processo, no seio de uma comunidade eclesial, que leve as pessoas a viver e a testemunhar, comunitariamente, o projeto de vida em Deus-Comunhão, que é a própria Igreja.
Segundo a nova missão da teologia, a ação da Igreja enquanto evangelização inculturada, expressada pelo Concílio Vaticano II, Evangelii Nuntiandi e outros documentos da Igreja, desemboca na criação de comunidades inculturadoras do Evangelho e culturalmente novas, que comporta um processo de evangelização implícita e, na seqüência, passos de uma evangelização explícita - o que necessariamente resulta na criação de Comunidades Eclesiais de Base. (CEBs) - comunidades estas chamadas ao discipulado e à missão. E quanto mais abertura de novas comunidade de base mais legítima será a expressão da fé na oração, no culto, na vida e no comportamento cristão.
(*advogado, professor e coordenador da Pascom Perpétuo Socorro)
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